‘PORTO ALEGRE FAZ UM ESFORÇO PARA NÃO PRESERVAR A MEMÓRIA DAS LUTAS DE CLASSE’

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‘PORTO ALEGRE FAZ UM ESFORÇO PARA NÃO PRESERVAR A MEMÓRIA DAS LUTAS DE CLASSE’

Criado pelo historiador Frederico Bartz, projeto “Caminhos Operários” resgata a memória dos trabalhadores na Capital

No começo dos anos 1910, o nº 26 (atual nº 444) da Rua Comendador Azevedo passou a abrigar a Bürgerklub, associação que era um dos centros da vida comunitária no Arrabalde da Floresta, região de forte presença de operários de origem alemã. Em 1912, o local passou a ser também a sede da Allgemeiner Arbeiter Verein (Associação Geral dos Trabalhadores) e, em 1917, após a chegada do líder anarquista Friedrich Kniestedt, o endereço se fixou como palco de ações do movimento operário, como o protesto contra o envio de soldados poloneses para a I Guerra Mundial.

O atual nº 963 da rua Dr. Mário Totta, no bairro Tristeza, Zona Sul, exibe uma extensa e linda floricultura, com uma aconchegante cafeteria aberta ao público. Quase ao lado de onde sai o aroma dos cafés, permanece a casa amarela de Josef Winge, nascido na Silésia, uma província do Reino da Prússia, e que em 1884 imigrou para o Rio Grande do Sul. Nos Arrabaldes da Tristeza, Winge trabalhou com pecuária e com o plantio de árvores frutíferas, desenvolveu técnicas de aperfeiçoamento agrícola e atuou na organização dos camponeses do bairro, sendo um dos fundadores, em 1910, do Syndicato Agrícola da Tristeza.

Na Rua General João Telles, no Bom Fim, o antigo nº 37 C (atual nº 317), em 1908 se tornou a sede da Società Italiana di Beneficenza e Istruzione Principessa Elena di Montenegro, cuja missão era proporcionar educação aos imigrantes italianos que moravam em Porto Alegre. Conhecida como Sociedade Elena di Montenegro, o local logo começou a ser ponto de atividade dos militantes anarquistas. No início da década de 1910, ali foram encenadas peças teatrais do Grêmio Dramático de Cultura Social, organizado por operários anarquistas. Durante as greves de 1917 e 1918, a sede foi o local de reuniões do Sindicato dos Alfaiates, da Liga de Defesa Popular e da União Geral dos Trabalhadores.

Estas e outras histórias integram o projeto Caminhos Operários, criado pelo historiador Frederico Duarte Bartz. A ideia nasceu em 2015 com uma caminhada pouco pretensiosa no Bairro Floresta, onde Bartz passava por seis pontos de memória no bairro, numa jornada batizada de Floresta dos Operários.

O historiador conta que a iniciativa surgiu no contexto do movimento de ocupação dos espaços públicos de Porto Alegre ocorrido em 2012 e 2013, aliado com sua formação no estudo dos movimentos operários e sua própria atuação na coordenação do Sindicato dos Técnico-Administrativos da UFRGS, UFCSPA e IFRS (ASSUFRGS). O contexto e a experiência sindical se aliaram a outro fator importante: o debate sobre o Plano Diretor da Capital, o avanço da construção civil, a preservação do patrimônio e a gentrificação no 4º Distrito.

“Essas três conjunturas me levaram a criar a caminhada (o primeiro roteiro). Foi uma caminhada que se mostrou interessante para quem participou, então acabei desdobrando essa primeira em outras maiores”, explica Bartz, Técnico em Assuntos Educacionais na Biblioteca da Faculdade de Arquitetura da UFRGS.

E assim, com o desejo de mostrar a história da classe trabalhadora em Porto Alegre e chamar a atenção para os lugares dessa memória enquanto eles ainda existem, surgiu o projeto Caminhos Operários. Após a experiência bem sucedida do roteiro no bairro Floresta, o historiador criou um segundo trajeto, um pouco maior, indo da igreja São Geraldo até o Bom Fim. Na sequência, a caminhada pelos lugares da memória operária da Capital virou um curso de extensão na UFRGS, que tem duas versões, com quatro e com seis caminhadas, onde são conhecidos lugares de memória da classe trabalhadora no Bom Fim, Centro, Cidade Baixa, Floresta, Partenon e Tristeza.

O curso ocorreu de modo presencial em 2019. Devido a pandemia, foi realizado virtualmente em 2020 e 2021 e, em 2022, ainda não está decidido qual será o formato no segundo semestre. O projeto tem uma página em rede social e, em alusão aos 250 anos de Porto Alegre, Bartz elegeu 25 endereços e tem publicado semanalmente suas histórias como forma de resgatar o passado de lutas para, quem sabe, se relacionar com as preocupações do presente.

Razões da memória perdida
O historiador analisa como sendo variados os motivos que levaram ao apagamento da memória operária na Capital gaúcha. Por um lado, ele explica, há um processo de mudança na organização do movimento operário, prejudicado ao longo do tempo por lideranças presas, mortas, além de problemas internos nos sindicatos, em que trocas de direção muitas vezes causaram a perda do que foi construído até então.

“Tem uma questão de instabilidade do movimento da classe trabalhadora que dificulta a permanência de uma memória”, pondera Bratz.

Todavia, há outros elementos que o historiador considera mais relevantes para a perda dos lugares da memória operária em Porto Alegre. Como a configuração espacial da cidade, que passou por mudanças profundas, com a expulsão de comunidades negras e pobres de determinados bairros, como a região industrial, forçando moradores a se mudarem para a periferia ou cidades da região metropolitana.

“No momento em que os pobres operários trabalhadores são expulsos, essa memória imigrante se perde”, analisa. Por último, mas não menos importante, o historiador enfatiza o processo de apagamento deliberado da memória da classe trabalhadora.

“Porto Alegre se vê como uma cidade de classe média, uma cidade burguesa, uma cidade cuja história, pelo menos a história oficial, tem uma memória que é seletiva. Porto Alegre faz um esforço para não preservar a memória das lutas do passado, das lutas de classe, é uma cidade que se constituiu no tensionamento da luta de classe. A construção de Porto Alegre como cidade foi transpassada pela luta de classe e esse tensionamento, esse conflito, esse papel das lutas da classe trabalhadora foram apagados deliberadamente”, afirma.

Na avaliação do historiador, não é interesse da elite política de Porto Alegre em lembrar da greve de 1917, da greve geral de 1906, ou lembrar da história da Federação Operária. “Se quer passar uma história que é formada de heroísmo, em geral, das elites e com ‘tranquilidade’. Mas é uma paz mantida sobre repressão, um processo em dizer que aqui parece que não houve lutas no passado, e tiveram muitas.”

Entre os espaços onde essas lutas da classe trabalhadora ocorreram, ele cita a Praça da Alfândega, lugares do 4º Distrito, o bairro Floresta, onde haviam os sindicatos, as greves e as caminhadas de Primeiro de Maio.

“Nada disso se manteve na memória porque tem um esforço deliberado de apagamento de parte da burguesia. A burguesia quer que as suas fábricas sejam reconhecidas pelo papel que os patrões tiveram. Parece que as fábricas funcionavam sozinhas, parece que os trabalhadores e as trabalhadoras que viviam ali não existiam”, critica Bratz.

Com isso em mente, o projeto visa resgatar do esquecimento a história da classe trabalhadora de Porto Alegre e trazer para o tempo presente, no intuito de mostrar suas lutas e sua importância, e evidenciar que os trabalhadores foram sujeitos da história.

Locais de destaque
Ao lembrar os locais de memória que tem selecionado para o projeto Caminhos Operários, Bartz pondera que os prédios e logradouros muitas vezes misturam a “essência e a aparência”, e o esforço do trabalho é justamente ir além da aparência visível atualmente. Mostrar que no passado ali existiu algo importante que não se relaciona mais com o presente.

O bairro Tristeza, na Zona Sul da Capital, por exemplo, hoje um local onde se localizam alguns clubes de piscina, foi parte de uma liga de futebol organizada pelos comunistas em 1929. O historiador também destaca o endereço da Rua Comendador Azevedo, cuja organização cultural e recreativa nos anos de 1910 recebia as reuniões dos socialistas alemães em Porto Alegre.

“Hoje em dia se passa pelo prédio com a fachada bastante prejudicada e não dá para descobrir isso”, conta. Situação semelhante com a atual Sociedade Italiana no Bom Fim, que também recebia reuniões e exibia peças de teatro de anarquista no começo do século 20.

“Quando se passa ali na frente, isso não é perceptível, mas existe uma memória, aquele lugar é um lugar de memória da classe trabalhadora por conta disso”, afirma Bartz.

Os locais se sucedem. No nº 460 da Rua do Parque, há um prédio em péssimo estado de conservação que abrigou a sede da Federação Operária nos anos de 1920. O local, acredita o historiador, poderia ser recuperado e transformado em museu. O mesmo com o Sindicato dos Estivadores, na Cidade Baixa, a sede sindical mais antiga de Porto Alegre, em atividade desde 1925.

A Praça da Alfândega é outro ponto de destaque na memória da classe trabalhadora na Capital. Bartz lembra que a praça foi palco da grande greve de 1917, e ponto de partida da primeira caminhada pública em comemoração ao dia Primeiro de Maio no Brasil. Indo para a Zona Leste, a Escola Estadual Apeles Porto Alegre, no Partenon, foi um campo de futebol de clubes operários na década de 1930.

“É possível citar vários lugares que se passa pela frente e não significam nada, mas há toda uma história da classe trabalhadora ali que faz com que aquele lugar seja um lugar de memória”, explica, enfatizando a importância da preservação desses espaços, com políticas públicas, placas, que marquem a história do local.

Dois dos mais celebrados parques da cidade estão na lista. O Moinhos de Vento, entre o final do século 19 e o começo do século 20, era uma área de campos ocupada pelo Prado Independência e pelos matos pertencentes à família Mostardeiro. O Arrabalde dos Moinhos de Vento ficava próximo ao bairro industrial Floresta e, durante muito tempo, foi um dos espaços preferidos de passeio dos militantes operários e de suas famílias.

O mesmo acontecendo com o então Campo da Redenção ou Campo da Várzea, uma região da cidade usada por peões, tropeiros e carreteiros para trazer rebanhos de gado e produtos rurais para serem vendidos na cidade. Assim como o Moinhos de Vento, a Várzea também foi uma área de encontro dos trabalhadores negros escravizados ou livres, e sede de batuques, como os realizados em frente a Igreja do Bonfim. O nome Campo da Redenção surge em 1884, em homenagem a libertação de trabalhadores escravizados na Capital.

“É importante a gente preservar a memória de que ali houve luta, foi lugar significativo para trabalhadores e trabalhadoras. A história do trabalho foi muito apagada em Porto Alegre. O Caminhos Operários é um pequeno esforço para trazer ela de volta, mas eu acredito que é necessário se fazer muito mais”, ressalta o historiador.

Bartz sente que o projeto tem despertado maior interesse nos últimos tempos. No contexto da recente reforma trabalhista que não criou os empregos prometidos, da precarização cada vez maior dos trabalhadores e dos elevados índices de desemprego da população, ele acredita que a palavra “classe trabalhadora” está voltando a ser pronunciada. Mais que isso, está voltando a incomodar.

“Essa palavra sempre incomodou, né? Tanto que os ataques contra os trabalhadores não são por acaso, mas eu acho que ela tá voltando a povoar a mente das pessoas”, confia o historiador, dedicado a não deixar morrer na cidade as marcas de quem a construiu.

fonte: sul21.com.br